Entre os quatro evangelistas, São Lucas ocupa um lugar singular. Não foi um dos Doze Apóstolos, mas, com sua pena e seu olhar de médico, tornou-se voz indispensável do cristianismo nascente. Chamado por São Paulo de “o médico amado” (Cl 4,14), Lucas soube unir ciência e fé, razão e compaixão, e deixou à Igreja dois tesouros inestimáveis: o Evangelho que leva seu nome e o livro dos Atos dos Apóstolos.

Um homem de cultura e fé
Nascido em Antioquia, cidade cosmopolita do Império Romano, Lucas cresceu no cruzamento de culturas. Isso o fez compreender a universalidade da fé cristã. Seu Evangelho mostra um Cristo que se inclina aos pobres, às mulheres, aos estrangeiros e aos pecadores: o Senhor da misericórdia. É de sua pena que recebemos parábolas como a do Bom Samaritano e a do Filho Pródigo, onde resplandece a ternura de Deus.
A Escritura não descreve diretamente o primeiro encontro entre os dois, mas a tradição cristã conserva a ideia de que Lucas teria sido apresentado a Paulo em Antioquia ou durante suas missões. Amigos em comum da comunidade cristã podem ter feito essa ponte. O que sabemos, com certeza, é que Lucas se tornou seu companheiro inseparável, cuidando das suas dores como médico e fortalecendo sua missão como irmão de fé.
Um erudito a serviço da fé
A figura de São Lucas distingue-se não apenas pela sua vocação médica, mas pela pena que soube dialogar com a tradição literária do mundo greco-romano. Ao abrir o seu Evangelho, não encontramos apenas a simplicidade direta de um anúncio; vemos a elegância de um prólogo que recorda os grandes historiadores da Antiguidade. “Depois de investigar tudo cuidadosamente desde o princípio, resolvi escrever-te em ordem, ilustre Teófilo, para que conheças a solidez dos ensinamentos que recebeste” (Lc 1,3-4). Aqui, Lucas se apresenta como pesquisador atento, quase como um cronista da fé, consciente de que o cristianismo nascente precisava ser anunciado não só pela voz dos missionários, mas também pela autoridade da palavra escrita.
Seu grego, de fina qualidade literária, revela erudição rara entre os primeiros discípulos. Os estudiosos não hesitam em compará-lo a Tucídides ou Políbio pela clareza e pelo método. Enquanto Marcos transmite vivacidade, João mergulha no mistério e Mateus organiza o ensino do Mestre, Lucas prefere a investigação cuidadosa, o detalhamento que confere à narrativa uma textura histórica. Ele descreve curas com precisão médica, observa gestos e sentimentos com a atenção de quem vê mais do que o aparente, como um pintor que lança camadas de cor sobre a tela.
Não é por acaso que os Padres da Igreja reconheceram sua autoridade intelectual. Irineu de Lião, no século II, o nomeia autor do Evangelho e dos Atos, defendendo sua fidelidade apostólica. Orígenes o inclui no cânone dos quatro evangelistas, ressaltando a inspiração e a beleza de seu texto. Eusébio de Cesareia, ao escrever sua História Eclesiástica no século IV, confirma a sua identidade de companheiro de Paulo e exalta a seriedade de seus relatos. São Jerônimo, por sua vez, no De viris illustribus, não hesita em chamá-lo de “médico de Antioquia”, reconhecendo tanto sua profissão quanto sua cultura.
Mas talvez a maior prova de sua erudição esteja no destinatário a quem dirige sua obra: o “excelentíssimo Teófilo”. O termo grego kratiste era reservado a altos oficiais do Império Romano, gente de toga e púrpura, habituada ao rigor do discurso e às sutilezas da retórica. Ao escrever-lhe, Lucas não se dirige a um ouvinte qualquer, mas a alguém acostumado às bibliotecas, aos tribunais e aos auditórios do império. Sua narrativa não buscava apenas instruir os humildes; pretendia também convencer os nobres de que a fé cristã possuía fundamento sólido e digno de adesão.
Assim, a erudição de Lucas não foi luxo estéril, mas dom colocado a serviço do Evangelho. Através de sua capacidade de diálogo soube falar a todos: ao pobre, que encontrava esperança no Filho Pródigo; à mulher, que via sua dignidade restaurada em Maria e nas discípulas de Jesus; e ao nobre romano, que reconhecia na estrutura refinada do texto a seriedade de uma nova fé. Erudito, sim, mas sobretudo missionário, Lucas deixou à Igreja o testemunho de que a inteligência não se opõe à fé, mas pode torná-la ainda mais luminosa.
Médico, escritor e artista
A tradição cristã jamais se contentou em ver São Lucas apenas como médico e escritor. Desde cedo, o imaginário da Igreja o envolveu também no manto da arte, atribuindo-lhe o título de primeiro pintor da Virgem Maria. Conta-se que, ao conviver com a Mãe do Senhor, Lucas não apenas recolheu suas palavras e memórias para o Evangelho, mas ousou fixar em imagem o seu semblante, inaugurando assim a tradição dos ícones marianos.
Entre os ícones que a devoção atribui a sua mão estão alguns dos mais célebres do mundo cristão. O de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, conservado em Roma, é lembrado como obra lucana. Também o de Nossa Senhora de Czestochowa, venerado na Polônia como “Virgem Negra”, carrega a tradição de ser fruto de seu pincel. Da mesma forma, o antigo ícone Salus Populi Romani, guardado na Basílica de Santa Maria Maior, em Roma, é apontado como herança do evangelista-artista. Embora a história e a crítica moderna questionem tais origens, o simples fato de a devoção popular remontar essas imagens a São Lucas revela a confiança que os fiéis tinham em sua sensibilidade.
Muitos perguntam o que aconteceu com a “primeira pintura” de Maria feita por Lucas. A verdade é que não há consenso. No Oriente, igrejas antigas reivindicavam possuir o original, guardado como relíquia. No Ocidente, diversas imagens foram sendo restauradas e repintadas ao longo dos séculos, perdendo qualquer traço que pudesse ser comprovadamente autêntico. Mas talvez o essencial não esteja na tela, e sim no símbolo: Lucas é o evangelista que mais falou da infância de Jesus e da ternura da Virgem, e essa mesma ternura o povo acreditou que ele também traduziu em cores.
Além de Maria, algumas tradições orientais afirmam que Lucas pintou também os ícones de São Pedro e São Paulo, como que perpetuando em imagens aqueles com quem conviveu e que ajudou a formar a Igreja nascente. O fato é que, já no século V, em Constantinopla, havia um santuário dedicado à Virgem, chamado Hodegon, onde se venerava uma imagem atribuída a Lucas. Essa crença atravessou séculos e se espalhou pela cristandade, de modo que, na Idade Média, artistas europeus gostavam de se representar em ateliês imaginários, pintando a Virgem sob o olhar atento de São Lucas, seu patrono.
Assim, a figura de Lucas como artista não se prende à prova histórica, mas ao poder da tradição. Ele é visto como aquele que “pinta o invisível”, seja pela pena que descreveu o Filho Pródigo e o Bom Samaritano, seja pelo pincel que teria gravado o rosto de Maria. Médico dos corpos, historiador da fé e pintor da esperança, São Lucas tornou-se para a Igreja símbolo da harmonia entre ciência, literatura e arte, lembrando que toda forma de beleza pode se tornar caminho para o encontro com Deus.
Companheiro fiel de Paulo
A vida missionária de São Paulo foi marcada por viagens, perigos e, não poucas vezes, prisões. Em Roma, o apóstolo passou por uma custódia domiciliar, onde, mesmo vigiado, podia receber visitantes e anunciar a fé. Mais tarde, durante a perseguição de Nero, enfrentou condições mais duras, encerrando sua vida em martírio. Em todas essas etapas, porém, um nome sobressai como fiel companheiro: Lucas.
Nas próprias cartas, Paulo dá testemunho dessa lealdade. Ao escrever a Timóteo, lamenta os muitos que o haviam abandonado, mas acrescenta uma nota de ternura: “Só Lucas está comigo” (2Tm 4,11). Essa breve menção vale mais do que páginas inteiras de narrativa: mostra que, no momento em que a solidão poderia esmagá-lo, Paulo ainda contava com a amizade e os cuidados do médico amado.
Lucas não estava ali apenas como cronista ou historiador, mas também como cuidador das feridas do apóstolo. É possível imaginar o médico e o missionário lado a lado, partilhando não só a dor das algemas, mas também a esperança que brotava em cada oração. As seções em primeira pessoa dos Atos dos Apóstolos, quando o narrador diz “nós embarcamos” ou “nós navegamos”, confirmam que ele não apenas relatava a missão, mas a vivia intensamente.
As relíquias de São Lucas
Mas sua história não terminou com a morte. As relíquias de São Lucas foram veneradas primeiramente em Tebas. Mais tarde, parte delas foi trasladada a Constantinopla e, no século XII, chegaram a Pádua, na Itália, onde repousam hoje na Basílica de Santa Giustina. O crânio, por sua vez, é venerado na Catedral de São Vito, em Praga. Assim, sua presença atravessou fronteiras, levando devoção a diferentes povos e confirmando a universalidade que ele tanto proclamou em vida.
Devoção e festa litúrgica
A Igreja o celebra como santo desde os primeiros séculos, muito antes dos processos formais de canonização. Sua festa litúrgica ocorre em 18 de outubro. É padroeiro dos médicos, dos cirurgiões e dos artistas, lembrado como aquele que uniu precisão e ternura, ciência e fé, missão e beleza.
A ternura de Maria em suas páginas
Entre os evangelistas, Lucas é o que mais se detém nos mistérios da infância de Jesus. É ele quem nos conta da Anunciação, da Visitação, do cântico do Magnificat, do nascimento em Belém, da apresentação no templo e do encontro do Menino com os doutores. São episódios de ternura e silêncio, quase íntimos, que levaram a tradição cristã a acreditar que o evangelista os teria recebido da própria boca de Maria. Os Padres da Igreja não registram esse encontro de forma explícita, mas já Santo Irineu e São Jerônimo notavam que tais detalhes só poderiam vir de uma testemunha tão próxima da vida do Senhor.
Como teria acontecido esse encontro? A história não nos dá certeza, mas a tradição imagina Lucas em Jerusalém ou em Éfeso, onde Maria viveu sob os cuidados de João, o discípulo amado. Médico de corpos e pesquisador de almas, ele buscava “investigar tudo cuidadosamente desde o princípio” (Lc 1,3). Ora, quem melhor do que a Mãe para narrar o princípio? Essa intuição explica por que seu Evangelho se abre com as palavras e experiências da Virgem, como se ele tivesse sentado diante dela, recolhendo com reverência as memórias do coração materno.
Havia também uma razão espiritual para essa busca: Lucas sempre demonstrou sensibilidade para com as mulheres. É o evangelista que dá voz a Isabel, à profetisa Ana, à pecadora que unge os pés de Cristo e à viúva de Naim. Ele olha para elas não como figuras secundárias, mas como protagonistas da história da salvação. Não surpreende, portanto, que tenha se aproximado de Maria para tecer, com fios de ternura, a narrativa da encarnação e da infância de Jesus.
Essa atenção à origem não o impediu de narrar também o fim visível da presença de Cristo entre os discípulos. De fato, Lucas é o único evangelista a registrar com clareza a Ascensão. No final de seu Evangelho, Jesus conduz os apóstolos até Betânia, abençoa-os e se eleva ao céu (Lc 24,50-53). No início dos Atos, ele retoma a cena com mais detalhes, descrevendo a nuvem que oculta o Senhor e os anjos que prometem sua volta (At 1,9-11). Assim, Lucas completa o arco que começa com Maria recebendo o Filho em seu ventre e termina com os discípulos recebendo a missão de levá-lo ao mundo.
É como se Lucas abrisse uma janela para dentro do coração de Maria e, ao mesmo tempo, para o horizonte infinito da Igreja em missão. Em sua pena, a ternura materna e a promessa escatológica se encontram: de um lado, a lembrança da Virgem que embalou o Menino; de outro, a esperança dos apóstolos que olham para o céu. Ao unir esses extremos, Lucas nos recorda que a fé cristã nasce no silêncio do lar e se projeta para a eternidade, sustentada pela memória viva da Mãe de Deus.
Um evangelista da misericórdia
São Lucas, portanto, não é apenas um nome entre os quatro evangelistas. Ele é o testemunho de que a palavra escrita pode se tornar vida, de que a misericórdia de Deus tem rosto, e de que a fé cristã é feita de memória, fidelidade e esperança. Do seu túmulo em Tebas às basílicas da Europa, sua voz continua a ecoar: Cristo é o Salvador de todos.